segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Reeducação para a vida

"Decepções, desapontamentos e traições serviram para reeducar-me. Eu precisava desaprender alguns valores que incorporei ao longo dos anos. Minha escola foi complicada. Convivi ao lado de vespas fascinadas por luz de qualquer espécie e também acabei hipinotizado. Não sei precisar quando, mas, acordei: afetações de gente altiva vinham corroendo valores. Em algum ponto, notei que tinha chegado a hora de desensoberbecer o coração de delírios jactanciosos. Hoje converso com a alma para não cobiçar nada que me deixe de gravata lavada e colarinho branco. Quero nunca mais precisar de confete, holofote, palmas. Proponho a mim mesmo viver sem espalhafato. Depois de muita luta, reconheço: tenho poucos relatos surpreendentes para contar. Na maioria das vezes falo e não vejo grandes arrebatamentos em quem me ouve. Desejo continuar assim. Espero que pessoas comuns se tornem os meus amigos. Quero a companhia de gente que se sente atraída pela simplicidade. Não evitarei a densidade de minhas inquietações. Dúvidas me assolam. Lido com desejos impossíveis. Decido não distanciar-me do drama humano. Abandono doutrinas que creditavam o sofrimento universal na conta de uma “providência” divina, elas me roubavam a humanidade. Sei que viver é amedrontador, mas mesmo assim pretendo nunca esquecer de refutar-me. Serei crítico mordaz do que escrevo. Persevarei em duvidar das conclusões que julguei ter alcançado e zombar de minhas certezas. Não hesitarei quando ver-me encalacrado com os paradoxos de minhas reflexões. Marretarei a teologia que há pouco me fazia sentido. Não serei tímido ao derrubar parapeitos que protegeram convicções. Por que temer a incerteza? Não nego a angústia de saber-me mortal. Inconformado com a brevidade da vida intensifico o dia-a-dia. Tenho pouco tempo, mas ainda pretendo conhecer alguma geleira chilena, escalar algum pico alpino e mergulhar em algum coral caribenho. Conto os anos e me pergunto quantos livros lerei. Degustarei mais poesia? Noto essa fome de viver sempre que observo a areia da ampulheta escorrer sem trégua. Assumo que felicidade não é um absoluto, apenas um jeito de perceber os instantes. Mais do que nunca cuido para que apertos de mão valham como gesto de amizade. Espero saber rir de falsas onipotências – as minhas, principalmente. Coloco esperança em meu horizonte existencial. A frágil semente que despretensiosamente planto precisa carregar o destino de ser carvalho. Breve, passarei. Despeço-me do sonho de Ícaro, não ambiciono o sol; na estrada, basta-me um lampião. Ah, por último: se acendo rastilhos de pólvora, estou contente!"

Ricardo Gondim

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